divagações concretas concretudes abstratas

e um copo vazio está
cheio de ar

9.11.08

da série:contos reunidos

apenas uma história comum
Quando tudo começou ninguém tentou inibir nenhuma sensação. Aos poucos as cores foram tomando corpo e se transformando em contrastes que ofuscavam a consciência ainda entre aberta




A fenda na porta estava anunciando que algo estava por chegar. Mas não se exalte amigo leitor, nessa historia nada vai surpreendê-lo. Espere, já vou contar o que aconteceu.
Não espere nada que vá transformar a sua vida, não espere que nada de extraordinário aconteça dentro de você.
Pois bem, a fenda da porta entre aberta não te causará surpresa, não te deixará ansioso, não causará nada. Apenas uma história comum. Simples e verdadeira.
O vento soprava alto pela fenda de uma das janelas da sala. O som estridente fez com que a moça deitada no sofá acordasse. Ela dormia compulsivamente, fazia da vida uma eterna repetição sem sentido e sem emoção. Chagava do trabalho e ia direto pro prato de sopa, um copo com água gelada, um pão com manteiga e depois o esperado sofá. Deitava e de lá assistia – as primeiras notícias, apenas – o Jornal Nacional e dormia o sono dos justos.
Naquele dia o som do vento a acordou. Ela abriu os olhos, limpou o canto da boca, foi ao banheiro, lavou o rosto, pegou os óculos na mesinha da sala, repleta de elefantinhos, pequenas xícaras de porcelana e três ou quatro cinzeiros devidamente limpos. Ela nunca fumou. - Deixava ali os cinzeiros caso alguém quisesse fumar, embora nunca recebesse visitas. A não ser uns tempos em que ela teve um flerte com um corretor de seguros. O romance acabou por que o homem roubou umas jóias que ela tinha. - Uma propaganda na televisão chamou sua atenção, mas um grande e gostoso bocejo a fez rapidamente se desligar do aparelho. Não, ela não desligou a televisão, só não tinha mais foco. Agora sua atenção voltava-se pro quarto. Ela percebeu por uma fenda na porta a luz acesa. Olhou pra mesa de jantar, redonda com uma toalha com desenhos de temática portuguesa. Uns galos pretos e verdes. Em cima a mesa, o prato de sopa vazio, migalhas de pão, o copo de água pela metade. Na cadeira, quando olhou de soslaio percebeu que suas roupas - as que tinha chegado do trabalho – estavam todas lá.
Rapidamente pensou: eu não entrei no quarto.
Estacou de medo. Na cabeça milhões de pensamentos corriam. Pensou em ligar pra policia, pensou em invadir o quarto, pensou em muitas coisas. Correu pra cozinha e interfonou ao porteiro. Pediu que ele subisse depressa. Na porta, a mulher de camisola rosa puída pelo tempo e pelo sofá. O porteiro cujo nome ela nem sabia, na porta parecia tranqüilo de que tudo estava certo. Ela explicou rapidamente a situação pro porteiro que se apresentou José. Ele temeroso, depois de toda a história que ela tinha contado, foi caminhando lentamente na direção do quarto. Colocou o ouvido na parede por alguns segundos. Nada. Em silêncio balançou a cabeça pra ela. Ela não parecia estar contente e apontou pro quarto. Ele colocou o ouvido na porta do quarto e de lá ouviu-se um barulho. Parecia um barulho de cão, ou algum rosnado parecido. Ela quis gritar, mas se conteve por que José colocava a mão pra calar-lhe a boca. Ainda ocultando sua voz, José mais uma vez aproximou o ouvido da porta. Outro rosnado.
A essa altura ela não se preocupava mais com o barulho, não se interessava tanto com o que acontecia no seu quarto. O coração dela batia acelerado, mas agora, não mais pela interrogação que habitava seu quarto. Aquela mão na boca, aquele toque de uma mão masculina nos lábios faziam-na relembrar tempos em que a vida não era só uma eterna repetição enfadonha. Reprise de noites, de cochilos no sofá. Aquela mão a fez recordar os banhos de chuva, as bebedeiras as terças feiras sem motivo, os tempos que pulava corda na escola, os amigas, a filha, a alegria, enfim... a vida. Há muito tempo não sentia aquele frio na barriga, há tempos não sentia as mãos suar. Ela pensou em mil coisas impublicáveis.
- Acho que é um Morcego. José falou aos sussurros.
- O que?
- Um morcego. A senhora deixou a janela aberta?
Depois de uns dez segundos ou mais ela entendeu sobre o que ele falava.
- É, talvez.
José entrou pelo quarto, devagar foi pra debaixo da cama.
Ela ficou parada olhando o homem entrar embaixo da cama e salvar a donzela indefesa do dragão que habitava sua torre. Experimentava uma sensação desconhecida, pensava ou repensava toda sua vida.
Incrível como em apenas um momento, refletimos uma vida inteira de escolhas.
De repente um vulto passou por ela, bateu no armário e enfim voou pela janela aberta.
Consegui. José deixava escapar um sorriso orgulhoso da vitória.
Ela olhava pra ele com olhos marejados.
- Muito obrigada!
- Até.
José se dirigiu a porta, ela ainda pensou em pedir pra ele ficar, mas não o fez. Da porta José apenas naquele momento percebeu a camisola que ela usava. Ela também percebeu que ele notara. Os dois se olharam num clima que não sabiam bem o que era.
- A senhora não quer me oferecer um café? José dizia em tom envergonhado.
Ela parou, respirou fundo.
- Não. Eu tô sem pó.
- Ta. Tchau. Desculpa.
- Nada José. Nada.
- Boa noite.
E lá foi o José pegar o elevador de serviço e descer. Da porta de casa ela olhava o ponteiro do elevador chegar ao térreo
Não era tesão o que ela sentia. A sensação de prazer não era sexual. Era uma sensação de vida, de que ela podia viver e não apenas fazer parte da vida que ela mesma se impusera.
Trancou a porta, foi até a cozinha, pegou o pó de café, colocou água na cafeteira. Alguns minutos depois tomou o café sentada na mesa da sala. Com um sorriso no rosto pensou que no dia seguinte ia aproveitar o horário de almoço pra comprar um vestido novo. Rosa, talvez.



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Um comentário:

Super disse...

vale a pena ler de novo

eu?

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to correndo.sempre pressa.meio atrasado.ligação perdida.olhar atento.desculpa o atraso.to indo embora.quer carona?aqui desse lado,aqui..assim mesmo.meu fluminense e meus desejos.um beijo do seu.eu aqui em qualquer lugar aqui, espaço pra vazão a idéias. ficção criando uma verdade pseudo pessoal. "eu quero uma verdade inventada"

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